segunda-feira, 12 de abril de 2010

Maria e a reengenharia



Era só mais um emprego para aquele rapaz que já havia viajado parte do mundo. Sem destino e sem laços ou fronteiras, passou os últimos 8 anos de sua vida fazendo trabalhos baratos a procura do que ele nem ele sabia. Ele, com seus 28 anos, aceitou mais um emprego temporário, e foi mais uma vez ser garçon, e essa era uma das profissões que ele mais gostava já que podia ter contato com pessoas e fatos que ajudariam a formar sua vida, e assim eram seus conceitos, ver a vida e viver.

Por volta de sua terceira semana de trabalho, o rapaz atendeu um senhor calvo com sobrancelhas grossas e uma camisa xadrez de tons azul escuro. Apesar de certa elegância daquele homem, suas três ou quatro canetas no bolso denunciavam que ele era de uma profissão ligada a engenharia, e normalmente pessoas dessa área não são preocupados com o vestir. Já se passava das 18:00 horas, e o Happy Hour tornava aquele lugar alegre e barulhento.

O rapaz que já tinha o costume de atender clientes exigentes e fazer de sua educação a arma de paz para aqueles que não agüentavam esperar muito tempo por seus pedidos ébrios, notou que aquele senhor com sorriso apagado estava sentado só há duas horas, tragando seu cigarro e fingindo beber aquele copo de Whisky.

Foi ai que a dona do bar chegou e sentou a mesa daquele estranho. O garçom que já estava acostumado à cordialidade de sua chefe com os clientes e amigos percebeu algo diferente. Ela abraçou aquele homem com um pesar que só os momentos fúnebres trazem. E depois de conversarem alguns minutos, o senhor partiu.

Durante as próximas duas semanas aquele senhor chegaria sagradamente às 18h10min, sentaria na mesma mesa e pediria uma dose dupla de Chivas Regal, gelo e uma jarra de água de coco.

A cada dia que se passava, as doses eram maiores. O senhor que tinha um brilho de suor na cabeça sem cabelos, passou a sair cambaleando todos os dias.

O garçon que já havia visto dezenas de pessoas tristes e amarguradas afundando sua desilusões em copos de bebidas passou a ficar cada vez mais intrigado com o sujeito. Suas roupas e jóias denunciavam que ele era uma pessoa de posses. Os raros amigos que por destino o encontravam no bar, trocavam poucas palavras e se dirigiam a mesas alegres e festivas, deixando o pobre homem na solidão de uma mesa de metal fria e fazia. Era assim que o garçom enxergava a vida daquele sujeito, fria e fazia.

Os meses caminhavam, e quando o engenheiro passava uma semana sem aparecer, o garçom temia que o pior tivesse acontecido. Em uma dessas semanas, um clima chuvoso e poucas meses a serem atendidas, o rapaz sentou-se naquela mesa acuada no canto do fundo. Olhou para o infinito como aquele homem de meia idade. Passou muitos minutos imaginando sua vida, suas viagens e seu eu interno... Aqueles lugares que ninguém, ou quase ninguém conhece dentro de cada um.
Tragou um cigarro, mas ele não fumava, bebeu um gole do Whisky, mas ele não bebia. Sentiu a dor daquele homem, e lembrou das suas próprias dores.

No dia seguinte, ainda com o chão úmido dos dois dias de chuva, o sol brilhou com louvor. Para quem já havia dormido em sacos contra o frio, choupanas em ilhas exóticas e quartos partilhados em Manhattan, aquele jovem que beirava os 30, parecia ter levantado de um longo inverno. Sua hibernação insólita parecia ter chegado ao fim. E ele decidiu que iria intervir na vida daquele homem estranho, que usava sempre a mesma camisa que só mudava o tom de cor.

Os dias passavam, e nada. Até que em uma terça-feira nublada e com muito vento, o senhor calvo reapareceu. O garçom lembrou da primeira chegada daquele homem, e tentou imaginar quanto de peso ele já havia perdido naqueles 9 ou 10 meses.

Quando o garçom se dirigia a mesa, a dona do bar inclinou-se e abraçou com um laço forte aquele homem definhado. Ele notou as lágrimas, notou a boca seca e os ossos da face que já saltavam do engenheiro. Esperou, e dessa vez a mulher jovem e bonita não saiu da mesa, e o homem não bebeu nada. Depois de uma hora a bela moça se despediu daquele homem que pela primeira vez saiu caminhando como um lorde, com a cabeça erguida e um ar de superioridade.

Como no dia seguinte o senhor agora magro e pálido não compareceu ao Happy Hour, o garçom resolveu interrogar sua patroa, que além de lhe pagar era uma amiga de velha data.

-Me diga, quem é aquele homem? Por que aquela tristeza?

Ela que sempre carregava um sorrido indestrutível se transfigurou e seus olhos alagaram.
-Aquele homem é uma das pessoas mais dignas que conheço, é um bom homem e um grande amigo. Era amigo do meu pai, e esteve do lado da minha família em todos os momentos difíceis. Ele é um anjo.

-Sim, mas o que levou ele aquela amargura?

Ela, que nunca foi de esconder palavras, enrolou contando toda a historia profissional do homem. Ele era um sujeito rico, dono de uma empresa de construção civil que ficava a poucos metros do bar. Viveu uma vida empolgante, ladeado por “amigos” e mulheres.

-Ok, mas o que faz um homem de meia idade, empresário e com esse histórico se tornar um bêbado em poucos meses?

-Amor!

Achando que já sabia de tudo, com toda a experiência de sua jornada pessoal, o garçom fala:

-Já sei... Mais um caso de amor não correspondido que o cara se afunda!

Com um sorriso lateral a jovem mulher responde:

-Não é tão simples. Ele fez escolhas, ele tinha tudo e não acreditava que sentiria falta de nada, já que ele tinha liberdade, dinheiro e fama.

Em seguida a historia foi revelada por completo. Aquele homem que nunca foi boêmio, viveu uma vida de prazeres. Com a naturalidade da gravidade, as coisas surgiam na sua vida. De negócios bem sucedidos a amores vorazes e fugazes. Tudo acontecia na sua vida, e nenhuma perda o abalava. Sempre acreditou que seu sucesso era invejado, e as demais pessoas eram apenas personagens da sua epopéia. Até que conheceu a doce Maria, uma mulher de olhar seco e pele morena. Era a mais nova contratada da sua empresa, e apesar de sua beleza e não ser exatamente uma jovem garota, foi contratada para servir cafezinho naquela empresa de engenharia.



Ele não conseguiu disfarçar seu olhar para a mulher durante uma importante reunião. Ficou mudo e com o olhar fixo, naquela que seria seu maior desejo.

Em pouco tempo com seu charme de homem maduro convenceu a humilde mulher a acompanhá-lo em uma viagem. Eles se amaram por um fim de semana em Buenos Aires. Ela uma mulher de poucas palavras, ele, pela primeira vez, apaixonado.

O romance permaneceu escondido, já que ele era rico e poderoso, não sabia ou queria tornar aquela historia publica. Eles continuaram com um namoro secreto, até que em uma de suas festas, mulheres e amigos fúteis foi flagrado por Maria aos abraços com uma mulher qualquer de tantas que ele usufruía.

Ele não imaginou que no dia seguinte sua amante/funcionária não estaria mais na empresa no mesmo horário. Não imaginou que aquela mulher pobre se mudaria da casa dos pais no dia seguinte. Não imaginou que ela faria tanta falta.

As festas acabaram, o prazer em usar corpos perfumados e esculpidos cessou. Ele passou a procurar aquela mulher de corpo esquio e perfume natural em todos os lugares, mas não tinha sucesso.

Ele passou 2 anos amargurado, mas vivendo com a esperança de conseguir o perdão. Até que recebeu uma carta. A mãe de Maria, em singelas palavras indicou o endereço de um hospital e quarto onde ele poderia encontrar sua filha. Ele procurou em todo o país, gastou quase todo seu patrimônio em investigações, e agora sabia que a sua Maria estava em um hospital a 2 quarteirões da sua casa.

Quando ele chegou ao hospital com um buquet de flores brancas e amarelas, Maria já não respirava mais, deixou-lhe um bilhete, que dizia:

-Eu sempre soube que você nunca seria meu como eu desejava, parti e vivi meus últimos dias sentindo sua falta. Não sei quem errou mais, eu ou você, mas agora não importa, não me resta tempo. Espero que você aproveite sua vida intensamente como sempre viveu. Beijos.

Após ouvir toda a historia o garçom deu passos largos e rápidos de um lado a outro, como se estivesse atônito. Pegou o endereço da casa do homem e correu ao seu encontro.

Era um sobrado antigo com um ar de casa abandonada, onde as ervas daninhas prosperavam e o musgo nos muros indicavam a desolação.

As portas abertas mostravam que não existia temor por invasores, quem sabe até o local já fosse ponto de encontro de marginais. Assustado com aquele ambiente o garçom apressou-se, e ao adentrar a casa viu o homem sentado no sofá, cabisbaixo e com um cigarro quase lhe queimando os dedos.

-Senhor, conheço sua historia, e não irei deixa-lo só, o senhor é um bom homem.

O homem quase sem forças ergue o olhar e com a garganta seca balbucia:

-Filho, eu não fui um bom homem. No máximo fui um ser comum e errante, mas fui muito ruim comigo mesmo. Vivi inebriado pelo poder, dinheiro e futilidades, perdi o amor da minha vida e hoje eu só tenho a mim mesmo para culpar.

O homem tosse e o sangue salpica todo o chão empoeirado. Ele limpa a boca com a manga de uma de suas camisas xadrez, leva a mão sob uma almofada e saca uma carta, direciona fracamente seu punho em direção ao garçom e exclama:

-Pegue filho, isso é para você. Nos últimos meses você foi a única pessoa que me olhou, que me serviu e me deu um pouco de alegria, trazendo meu maldito Whisky.

O garçom abre o envelope e vê um cheque de R$ 100 mil. Olha firmemente aquele homem moribundo e pergunta o porquê daquilo...

-Filho, meus dias estão contados, sei que você passou a vida saltando de empregos e lugares, não faça como esse decrépito doente aqui, vá viver um grande amor.

O rapaz sai daquele lugar com um sorriso radiante. O golpe tinha dado um resultado melhor que o esperado, nem sequer ele precisou matar o engenheiro como era planejado.

Mudou-se com Maria - sua comparsa - para Florianópolis, viveram dias de festas nas boates mais bombadas do pais, e formariam um lindo casal de empresários no ramo da pornografia, se Maria não tivesse morrido com uma overdose de crack, e ele o garçom, não tivesse sido atropelado por uma Kawasaki Ninja modelo 1993 a 300km/h.
Reza a lenda que seu corpo foi partido em vários e sua cabeça que ainda estava presa ao tórax pronunciou: - Me fudi!!!

O engenheiro curou o enfisema pulmonar, começou um relacionamento com Silvinha, a dona do bar, e ficou famoso como garoto propaganda da Ultra Corega. Sua calvície foi considerada um par perfeito para seu sorriso, e ganhou fortunas fazendo marketing para cremes dentais e Xampus contra caspa.

PS: Qualquer semelhança com personagens e Um Drink no Inferno são só coincidências

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